03 novembro 2009

nunca disse que era verdade

A muito custo consegui dormir, depois de noites e noites de insônia. Acordei de sobressalto com alguém que me cutucava no escuro. Era eu mesmo, naquele breu, querendo ter uma daquelas esclarecedoras conversas de si para si. Tentei voltar ao sono, mas minhas perguntas não deixavam. Virei de lado, mas lá estava eu, me olhando de frente, com novas indagações.

Perguntei se era mesmo comigo que eu queria falar. "Tanta gente mais interessante no mundo", eu disse, mas não bastou, o assunto era comigo mesmo. "Não podemos deixar para amanhã esse papo"? - foi o meu último recurso. "Não, não podemos", respondi, impassível.

Vendo-me acuado naquele interrogatório, tive de ser sincero, por mais embaraçoso que fosse: "você poderia repetir, eu não estava prestando atenção". Quantas vezes, sob pressão, não somos obrigados a dizer a verdade apenas para que não nos chamem de mentirosos.

E era justamente sobre isso que eu me indagava: a mentira. Exigia uma justificativa moral para os meus atos, alguns bastante questionáveis, eu bem sabia. Teria de defender minhas posições sobre o assunto caso quisesse me afastar da incoerência. E logo àquela hora da madrugada. Precisaria ser sincero, ou viveria irremediavelmente na inverossimilhança, coisa inadmissível a uma personagem fictícia. Comecei:
- A mentira tem sua função e sua importância, mas a vejo como um rito, uma religião, uma droga. Uma dessas coisas de que não devemos abusar. Mas aí, você viu  jogo do Curíntia ontem?
Tentei mudar de assunto, julgando que me daria por satisfeito, mas eu não tinha visto o jogo. Tive de continuar minha defesa:
- Olha, eu sei que você concorda comigo. Algumas pessoas simplesmente não precisam, não querem e nem farão nada depois de ouvir nossas verdades. Eu nada devo a elas. Minto só quando posso poupar um constrangimento, quando posso ser beneficiado pela dúvida, aquela mentira sobre sentimentos, que ninguém pode desmentir, aquela sobre palavras que pra cada um significam uma coisa diferente. 'Eu te amo', essas coisas. Não é uma questão de dizer ao meu amigo que os cadarços dele estão desamarrados uma vez que ele esteja de chinelos. O ponto central é a omissão de uma informação irrelevante. Não vou dizer ao cobrador do ônibus o quanto me irrita a sua mania de fazer aspas com os dedos, como se sua cabeça fosse uma citação. Não preciso elogiar a gravata do chefe, mas se eu puder omitir que acho a esposa dele uma gostosa, provavelmente vai ser melhor para todo mundo.
Já estava me empolgando com o argumento, e prestes a fazer confissões mais profundas, quando olhei ao redor e me deparei sozinho. Se bem me conheço, já estava cansado daquele meu papo besta. Além do mais, eu sabia que era tudo mentira.

Um comentário:

Saulo Cruz disse...

o mais difícil é encarar a nós mesmos... muitas vezes juíz, júri e executor de nós mesmos...

belo texto!

:-D